travessia

Bia Madruga
2 min readSep 9, 2020

--

os olhos abriram encharcados, vendo o dia nascente desaparecer como um escatoma. quando pôs-se de pé, vergaram um pouco as pernas, dando-se conta dum corpo que abria-se no centro,

onde era tronco,

um grande buraco que abria a começar pelo estômago,

rapidamente avançando em mais direções, irradiando um vazio enevoado que pesava sobre as pernas magras, sobre dois pés tão finos de veias saltadas.

de dentro do corpo, vísceras e órgãos vacilantes funcionavam com pena de si mesmos, começando a esfarelar um a um

a cada respirar já mínimo —

desistindo obedecendo

ao cansaço que agora as pernas tão vergadas

rígidas

faziam sentir.

agora sustentando o pesado vazio.

levou centenas de minutos e passos para alcançar a porta

o vazio havia já ocupado os lugares que antes eram garganta e boca, bochechas e longas orelhas,

os ombros esfarelavam cedendo ao peso

e os quadris eram um resto de ossos que articulavam passos de um último dia.

sobre o vazio, os olhos encharcados enxergavam sobre a cama lençóis empapados de sangue de um útero que se derramava ininterrupto, decidido a não parar, alcançando com sua vermelhidão um resto de pulmões insistentes e um coração que pulsava desacelerado, que se tinham deixado ficar.

as pernas tombaram numa sequência de estrondos para cada milímetro de ossos que também esfarelavam,

fazendo o pesado vazio atravessar a porta

o chão

e cair num precipício

que sempre estivera ali.

--

--